Deus não está morto, mas deve ser cancelado
Antes de mais nada, um aviso: este texto não é sobre filosofia, nem sobre religião. Nietzsche disse que “Deus está morto” e, mais recentemente, cristãos tiveram sua revanche com a série de filmes que afirma exatamente o contrário. Mas a divindade aqui em questão é outra. Antes de Slash, Eddie Van Halen ou Jimmy Page, Eric Clapton foi um dos fundadores do culto aos guitar heroes, ainda nos anos 60, quando um muro de Londres foi pichado com a frase “Clapton is God”. Extremamente talentoso como músico, cantor e compositor, por que Clapton merece então ser condenado pelo tribunal da opinião pública? Porque mesmo a consagrada genialidade do inglês não o impediu de, no auge da pandemia da covid-19, ser um ferrenho crítico de vacinas e negacionista de medidas de combate ao coronavírus.
E não é a primeira vez que Eric Clapton faz algo passível de cancelamento. A popularização do termo é recente, mas o guitarrista já cometeu deslizes que poderiam ter gerado desaprovação do público — ainda que, na era pré-internet, a exposição midiática da vida de celebridades não estivesse nos mesmos patamares de hoje. Para ficar em apenas um exemplo: nos anos 70, Clapton se apaixonou por Pattie Boyd, então esposa de um grande amigo, e não sossegou enquanto ela não largou o outro cara para ficar com ele. O outro cara em questão era o ex-beatle George Harrison. E por “não sossegar” entenda: fazer um disco inteiro para dizer o quanto ele era ensandecido pela mulher do amigo.
“Layla and other assorted love songs” foi o único álbum de estúdio que Clapton lançou com o grupo Derek and The Dominos. O disco traz exatamente o que título promete: a música “Layla”, até hoje um grande sucesso, e outras canções de amor. Há umas regravações ali, como “Little wing”, do Jimi Hendrix (outro guitarrista icônico, que morrera na época em que o disco estava sendo produzido), mas as composições, no geral, têm um único tema: o amor desesperado e (inicialmente) não correspondido que Eric sentia por Pattie. Especialmente “Layla”. A faixa título foi nomeada em homenagem à história “Laila e Majnun”, do poeta persa Nizami, de quem Clapton pegou inspiração para muita coisa no disco (Nizami é até creditado como coautor da música “I am yours”). Com muito rock e muito blues (e muita dor de cotovelo), “Layla and other assorted love songs” é Clapton em seu crème de la crème.
Algum tempo depois de “Layla”, Pattie terminou o casamento com George Harrison e juntou as escovas de dente com Clapton. O mais zen dos Beatles levou na boa, continuou amigo do casal e foi até padrinho na cerimônia. E se o autor de “All things must pass” não guardou mágoas, então não seria por isso que Eric mereceria um cancelamento. O relacionamento dele com Pattie foi conturbado, mas rendeu inspiração para mais algumas músicas (e “Wonderful tonight” talvez seja a mais notória). A sequência final de piano em “Layla” também seria incluída na trilha sonora do filme “Os bons companheiros”, de Martin Scorsese, em uma das cenas mais marcantes da película. Então, a traição ao amigo beatle não precisa ser uma mancha na vida ou na carreira do guitarrista, apelidado de “Slow Hand” por sua técnica com o instrumento. Mas não se pode ter a mesma tolerância com os posicionamentos de Clapton desde o início da pandemia.
Ferrenho crítico das vacinas contra a covid-19 (embora ele próprio tenha se vacinado), Clapton chegou a declarar que os imunizantes provocam hipnose em massa e queda de fertilidade. O guitarrista também deu diversas declarações contra medidas de distanciamento social, tudo isso no auge da pandemia. Sim, naquela época em que milhares de pessoas morriam diariamente. Ao lado de Van Morrison, Eric Clapton chegou até a lançar uma música contra vacinas e lockdown, num momento em que o coronavírus já tinha matado aproximadamente 130 mil pessoas no Reino Unido. Só que a conta chegou: Clapton pode até ser contra o isolamento social, mas isso não impediu que o isolassem. Se antes ele era o Deus da guitarra, agora até pessoas próximas preferiram manter distância, e isso de acordo com o próprio músico, que deu declarações públicas reclamando do ostracismo. “Tentei entrar em contato com outros músicos, mas simplesmente não tenho mais notícias deles. Meu telefone não toca, não recebo mais e-mails, é bastante perceptível”, disse o cantor, em uma entrevista. Existem pecados que podem ser perdoados, e existem os que não devem ser. Pelo visto, roubar mulher de amigo está na primeira categoria (ainda mais se a consequência disso for uma obra clássica). Ir contra medidas que salvam vidas, está na segunda.